Modelo Abolicionista Da Prostituição Um Caminho Para a Dignidade E Proteção – Iree
Modelo abolicionista da prostituição: um caminho para a dignidade e proteção – IREE #
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Danielle Zulques escreve sobre o modelo abolicionista como uma solução mais ética para combater a prostituição
A romantização da prostituição é um fenômeno crescente em determinados segmentos progressistas, onde o discurso sobre liberdade e a autonomia dos corpos se confundem com a defesa da exploração sexual. A ideia de que a prostituição é uma escolha legítima e empoderadora para as mulheres por exemplo, sustentada por narrativas que glamourizam a “profissão”, ignora uma realidade profundamente marcada pela violência, pobreza e falta de alternativas.
Um dos argumentos centrais de quem defende a legalização da prostituição, é de que a regulamentação protegeria as pessoas que trabalham com sexo, oferecendo-lhes segurança e direitos, entretanto, esse discurso é frequentemente desvinculado dos números alarmantes de violência que as mulheres em situação de prostituição enfrentam. Dados da ONU revelam que cerca de 80% das mulheres prostituídas experimentam violência física e sexual ao longo de suas vidas, com estudos demonstrando que o risco de assassinato é significativamente maior em comparação a outras profissões: segundo a OMS, as mulheres envolvidas com a prostituição têm uma taxa de mortalidade 40 vezes maior do que a média da população feminina.
Além disso, a prostituição muitas vezes envolve o tráfico de seres humanos, especialmente mulheres e crianças. De acordo com a ONU, o tráfico para exploração sexual é uma das formas mais comuns de tráfico humano, representando cerca de 79% de todos os casos reportados. Países que optaram por regulamentar a prostituição, como Alemanha e Holanda, viram um aumento no tráfico de mulheres, o que evidencia a forte ligação entre prostituição e exploração sexual forçada.
Essa romantização da prostituição também negligência a interseção entre desigualdade socioeconômica. Pessoas em situação de vulnerabilidade, muitas vezes pertencentes a minorias étnicas e sociais, são as mais afetadas. A narrativa de que a prostituição pode ser uma escolha livre ignora a pressão econômica, a falta de oportunidades de educação e emprego, e as barreiras estruturais que empurram muita gente para uma outra realidade. De fato, a prostituição raramente é uma escolha, mas sim uma imposição derivada de um sistema que falha em fornecer oportunidades dignas. A prostituição, em sua maioria, é impulsionada pela pobreza e pela marginalização social, onde pesquisas têm demonstrado que a grande maioria das pessoas em situação de prostituição – especialmente mulheres – vêm de contextos de extrema vulnerabilidade, sejam eles marcados por pobreza, falta de oportunidades de trabalho, discriminação racial ou imigração forçada. Em muitos casos, a prostituição não é uma escolha real, mas uma imposição resultante da falta de alternativas.
Um estudo realizado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima que milhões de pessoas em situação de prostituição são forçadas a essa prática como uma forma de sobrevivência econômica. Esse fenômeno reflete a lógica de exploração econômica de um sistema que mercantiliza os corpos humanos, principalmente das mulheres, transformando-os em mercadoria disponível para compra e venda. Ao aceitarmos a prostituição como uma prática legítima, perpetuamos a ideia de que é aceitável que seres humanos recorram à venda de seus corpos como última alternativa.
A prostituição reforça uma visão profundamente problemática de que o corpo humano, especialmente o corpo feminino, pode ser tratado como mercadoria. Essa ideia se encaixa em um sistema patriarcal e capitalista que já subordina mulheres e grupos marginalizados, reduzindo suas identidades e valores à sua utilidade sexual ou econômica.
Martha Nussbaum, em suas discussões filosóficas sobre a prostituição, argumenta que essa prática leva à “coisificação” do corpo, ou seja, à redução de pessoas a objetos de uso. Isso não só perpetua a desigualdade de gênero, como também reforça estereótipos de poder e dominação. Mesmo sob a justificativa de “escolha”, o processo de objetificação é prejudicial não apenas para as pessoas prostituídas, mas para toda a sociedade, que absorve a ideia de que corpos podem ser comercializados.
A defesa da prostituição como uma forma de “trabalho” ignora os danos psicológicos e sociais envolvidos, além de perpetuar uma visão deturpada sobre a autonomia, já que a verdadeira autonomia, como defende o economista Amartya Sen, só pode ser exercida quando há liberdade real para fazermos escolhas. No entanto, no contexto da prostituição, essa liberdade está severamente comprometida por fatores socioeconômicos, como a pobreza e a exclusão.
A questão da prostituição não diz respeito apenas às pessoas diretamente envolvidas, mas também à sociedade como um todo. Quando aceitamos a prostituição, estamos aceitando implicitamente um sistema que legitima a desigualdade, a exploração e a violência. O impacto vai além do indivíduo, afetando a forma como nos relacionamos como seres humanos e como enxergamos o valor da dignidade humana.
Se permitimos que o corpo humano seja reduzido a um produto de consumo, estamos minando os princípios de igualdade e respeito que deveriam nortear nossas interações sociais. A prostituição não pode ser tratada como uma questão de escolha pessoal isolada, uma vez que está profundamente entrelaçada com questões estruturais de opressão e marginalização.
Diante dessas realidades, o modelo abolicionista emerge como a melhor alternativa, pelo menos a mais ética e justa para lidar com a prostituição. Esse modelo, adotado por países como Suécia e Noruega descriminaliza as pessoas em situação de prostituição, criminalizando, por outro lado, os compradores de sexo e aqueles que lucram com a exploração. Além disso, ele oferece suporte financeiro, psicológico e educacional para que essas pessoas possam sair da prostituição e reconstituir suas vidas com dignidade.
Estudos mostram que, na Suécia, o número de mulheres em situação de prostituição diminuiu significativamente após a implementação desse modelo. Mais importante ainda, houve uma mudança de mentalidade na sociedade, que passou a ver a compra de sexo como uma forma de exploração e abuso, em vez de uma simples transação comercial.
A prostituição, quando analisada sob múltiplas lentes – ética, social, econômica e de direitos humanos – apresenta razões claras para ser combatida. Ela perpetua ciclos de exploração econômica e violência, além de reforçar a objetificação dos corpos humanos, sobretudo femininos. Em uma sociedade que valoriza a igualdade, a justiça e a dignidade humana, a prostituição não pode ser vista como uma prática legítima ou aceitável.
Portanto, ser contra a prostituição não é apenas uma questão de alinhar-se com uma visão retrógrada do mundo, mas sim de defender os direitos humanos, a dignidade e a igualdade para todas as pessoas, combatendo as estruturas que perpetuam a opressão e a exploração. A abolição da prostituição é um passo necessário para a construção de uma sociedade mais justa e solidária, onde todos os indivíduos tenham acesso a oportunidades reais de vida digna e sem exploração.
Essa dinâmica de exploração vai além do indivíduo, atingindo famílias e comunidades inteiras. Ao invés de promover políticas públicas que combatam a pobreza e ofereçam oportunidades reais de inclusão social e econômica, permitimos que uma parte significativa da população continue presa a um ciclo de precarização e exclusão, em que a prostituição é vista como uma “solução”.
Em vez de proteger e romantizar essa prática, é urgente que o movimento feminista e a sociedade como um todo voltem a se concentrar em fornecer alternativas reais para pessoas em situação de prostituição, como acesso a educação, saúde, moradia e empregos dignos.
Os artigos de autoria dos colunistas não representam necessariamente a opinião do IREE.
Danielle Zulques #
É Diretora para assuntos de política e sociedade do IREE. Advogada formada pela FAAP e pós-graduada em Ciências Políticas pela FESPSP. É Coordenadora da CAUSA - rede que conecta advogadas a mães em busca de suporte legal.